Por
Ceiça Ferreira, via Portal Geledes
Dirigido
por Carolina Moraes-Liu, o documentário “Deusa do Ébano: rainha do Ilê Ayê”, registra a participação de três jovens, Joseane,
Talita e Aurelina no concurso da beleza negra, promovido pelo Bloco Ilê Aiyê,
considerado "o mais belo dos belos".
São vozes femininas que contextualizam a importância desse evento para a
cidade, e para as mulheres negras, trata-se de "um acontecimento, que fará
o Curuzu tremer", no qual será escolhida a Deusa do Ébano: a Rainha do Ilê
Aiyê, título que vai além de ser eleita a mais bela, compreende o
reconhecimento da mulher negra, exatamente em Salvador, chamada de "Roma
Negra". Mas as estatísticas e também as falas de Arany Santana e Vovô
(respectivamente, diretora e presidente do Bloco) nos situam sobre a realidade
que existe na capital baiana, marcada pelo racismo e pela profunda desigualdade
social.
É nesse
contexto que acompanhamos o desejo e o empenho que essas três jovens dedicam a
esse concurso. Para Aurelina, significa a conquista de mais espaço para a
mulher negra e por isso também entende sua responsabilidade dentro dessa
comunidade. Ela que já está concorrendo há quatro anos revela: "Esse sonho
já passou por cima de mim [..] Eu desejo mais do que tudo". E assim como
ela, também Ninha que com a experiência de quem já participou várias vezes do
concurso e foi premiada como princesa, agora a ensina-lhe a dançar.
Joseane (outra candidata que o curta acompanha) afirma: "O
concurso mostra a beleza que nós temos, ainda pouco valorizada pelas agências
de modelo", que semelhante à mídia e ao cinema privilegia um ideal de
beleza eurocêntrico.
Essa histórica condição de subalternidade que a mulher negra é
submetida consolida o significado desse concurso, que segundo Arany "tornou
mais fácil ser negro em Salvador". Contra o racismo e a invisibilidade,
surge essa proposta de afirmação e orgulho da negritude, e também suas raízes
com a cultura e a religiosidade de matriz africana. É dentro do candomblé que o
bloco Ilê Aiyê nasceu, e a ele deve sua existência, se inspira em seu rico
patrimônio simbólico (cores, ritmos, mitos, valores, fazeres e princípios).
É também no candomblé, observando a dança dos orixás, que Ninha
afirma ter aprendido dançar o ijexá e o jincá (ritmos tocados durante o xirê,
estrutura em forma de círculo que organiza a sequência de cantigas e danças
dedicada a cada orixá), necessários para a apresentação na noite da beleza
negra. Logo, participar do concurso significa poder mostrar em essa origem e
religiosidade negra, algo extremamente relevante em Salvador, onde apesar da
baiana e de outros elementos da cultura afro serem "vendidos" como
orgulhosos atrativos turísticos, ainda prevalece a intolerância ao
povo-de-santo.
E essa exigência de saber dançar também pode ser entendida uma
oportunidade de mostrar uma corporeidade específica, uma maneira diferente de
lidar com o corpo, com qual expressa sua memória coletiva e ancestral. Como
ressalta a historiadora e poetiza Beatriz Nascimento, no filme "Orí".
"A memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história,
do seu passado, como se o corpo fosse o documento, não é à toa, que a dança
para o negro é um momento de libertação. O negro não pode ser liberto, enquanto
ele não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo".
Por essas razões compreendemos como a dança é tão importante, e
se faz presente desde os oito anos na vida de Talita (também uma participante
do concurso), que concilia a profissão de professora com o curso de dança. Ela,
juntamente com Joseane, Aurelina e tantas outras jovens, com diferentes
histórias de vida compartilham um só desejo: ser rainha de Ébano, aquela que
representa o Ilê Aiyê no carnaval.
Pelo documentário, acompanhamos a ansiedade e a preparação
dessas três candidatas ao título de Rainha do Ébano, o aprendizado das danças,
as etapas de seleção, a produção do figurino e o momento mais esperado, a noite
da beleza negra. E sem dúvida, essas mulheres estão mais lindas do nunca, estão
odara (palavra iorubá que sintetiza a ideia de beleza suprema, que compreende
ainda a bondade e a funcionalidade. Odara é bom, belo e útil).
O filme mostra a apresentação de várias participantes,
sequências que nos envolvem. Impossível não se emocionar com a apreensão, a
alegria e o choro delas nesse momento tão especial. E a escolhida daquele ano,
subiu novamente ao palco e agora com o título de Deusa do Ébano, Rainha do Ilê
Aiyê dança majestosamente.
Duas
semanas depois, essa rainha representou o bloco no carnaval, de maneira
exuberante ela apresentou no figurino e na delicadeza de seus movimentos
corporais o enredo do Ilê Aiyê naquele ano.
"O Ilê acertou quando criou a noite da beleza negra, porque
independente dessa afirmação da estética negra, ele elevou nossa auto-estima
enquanto mulheres [...] conseguimos que as mulheres dessa cidade se sentissem
bonitas", afirma Arany Santana (diretora do bloco). Concordo com ela, pois
criar um concurso que afirma e valoriza o feminino já é uma iniciativa
louvável, mas quando trata-se do feminino negro, acredito que é também uma
atitude política.
Desvalorizadas diante de um padrão de beleza eurocêntrico, obrigadas
a se enquadrarem em um lugar social que oscila entre os estereótipos da
"mulata" (objeto sexual) e da empregada doméstica, é que essas
mulheres negras encontram nesse concurso uma visibilidade historicamente
negada, e também onde se reconhecem e são reconhecidas como detentoras de
beleza, talento e uma história.
Ao destacar a cultura e religiosidade de matriz africana, nos
mais diversos elementos estéticos, como no figurino e na dança das
participantes, a noite da beleza negra apresenta também a possibilidade de
buscar no universo do candomblé a atuação de nossas percussoras, como Mãe
Aninha, Mãe Senhora, Mãe Menininha do Gantois, e também Mãe Hilda, a matriarca
do Curuzu, estrela guia da comunidade negra Ilê Aiyê, que assim como tantas
outras mulheres negras traziam em comum o desejo de liberdade.
Essa espiritualidade ancestral também nos oferece outros
símbolos e figuras míticas femininas. Tão ricas, complexas, altivas e amorosas,
como a de Oxum (dona do ouro, da prata e dos mais ricos encantos femininos); a
de Iansã (orixá guerreira, mãe protetora, senhora dos ventos e das
tempestades); e a de Iemanjá (mãe dos deuses, dos homens e dos peixes; e dona
de todas as cabeças, por isso rege o equilíbrio emocional e a loucura).
Inspiradas na força dessas mães negras e na altivez das iabás,
continuemos essa história de resistência, lutando cotidianamente contra o
racismo e o sexismo, lembrando sempre que "nossos passos veem de
longe"
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